entrevista bioenergia
Descarbonização

Publicado a:
23/06/2025

Escrita:
Dscarb Team

Bioenergia Avançada: Como os Resíduos Podem Acelerar a Descarbonização em Portugal

A bioenergia avançada está a ganhar terreno como uma solução estratégica para a descarbonização e a economia circular em Portugal. Ao transformar resíduos orgânicos em energia, esta tecnologia reduz emissões, diminui a dependência de combustíveis fósseis e valoriza recursos que, de outra forma, seriam descartados.

Nesta entrevista, Ana Calhôa, Secretária-Geral da Associação de Bioenergia Avançada (ABA), explica o que distingue os biocombustíveis avançados, o seu papel no cumprimento das metas climáticas nacionais e europeias, e os passos que Portugal ainda precisa de dar para se afirmar como referência na produção de energia sustentável a partir de resíduos.

  • O que é e de onde vem a bioenergia avançada?

Dá-se o nome de bioenergia avançada à energia obtida através da valorização de resíduos orgânicos – sejam eles de origem vegetal, animal ou resultantes de processos industriais e agrícolas, resíduos urbanos e domésticos. Estes resíduos, sob a forma de biomassa sólida, líquida ou gasosa, são depois transformados em combustíveis mais sustentáveis, energia ou calor, podendo assim servir como uma alternativa a fontes de energia convencionais. A principal vantagem da bioenergia avançada reside nos benefícios ambientais e económicos que proporciona, ao promover a economia circular, reduzir a dependência de combustíveis fósseis e aproximar os consumidores do cumprimento das metas ambientais estabelecidas.


Ao falar sobre bioenergia avançada, importa destacar a diferença entre o biocombustível convencional e o biocombustível avançado: enquanto o primeiro é produzido a partir de culturas agrícolas, o segundo resulta da valorização de resíduos orgânicos, tornando-o uma solução mais sustentável do ponto de vista ambiental e ético.

Os biocombustíveis derivados de resíduos têm ainda a vantagem de permitir uma redução imediata das emissões de gases com efeito de estufa — podendo emitir menos 84% a 97% do que o gasóleo convencional e, mesmo face ao elétrico convencional, representam uma redução de pelo menos 67%. Por não concorrerem com a produção alimentar e não implicarem maior pressão sobre a expansão de áreas de cultivo, os biocombustíveis avançados, também conhecidos como biocombustíveis de segunda geração, são mais sustentáveis e apresentam uma pegada de carbono inferior aos de primeira geração.


Uma vez que resultam da valorização de resíduos, os biocombustíveis avançados integram-se num verdadeiro circuito de economia circular, contribuindo de forma ativa para uma melhor gestão de resíduos e para a proteção ambiental. Um bom exemplo deste princípio é o óleo alimentar usado, gerado diariamente nas casas das famílias: muitas vezes considerado um resíduo sem utilidade, tem, na verdade, o potencial de ser transformado em biodiesel avançado, que poderá ser usado como combustível em veículos. Esta abordagem valoriza recursos já existentes e evita a pressão sobre novas matérias-primas, tornando o processo mais eficiente, sustentável e amigo do ambiente.

  • Qual é o papel que pode desempenhar no cumprimento das metas de descarbonização portuguesas e europeias?

Uma estratégia de descarbonização, nacional ou europeia, deve ter ao seu dispor uma série de ferramentas, tecnologias e políticas com um certo grau de complementaridade. A bioenergia avançada surge como uma dessas soluções que permitem mitigar o impacto dos combustíveis fósseis, ao fazerem parte de um mix energético menos intensivo, e reduzir o desperdício gerado a partir da atividade agrícola, florestal, industrial e doméstica. Trata-se de uma medida de transição, disponível para a fatia da população e de serviços que não têm ainda possibilidade de optar por soluções que não envolvam a utilização de combustíveis fósseis e que pode, no fundo, complementar a democratização da utilização de energia renovável e mais limpa.

A nível europeu, a nova Diretiva RED III (Revisão da Diretiva das Energias Renováveis), que reforça a RED II, estabelece metas obrigatórias de redução de 14,5% das emissões no setor dos transportes até 2030, através do uso de energia renovável — onde os biocombustíveis avançados são expressamente valorizados. Esta diretiva reconhece que a descarbonização da mobilidade, especialmente em setores difíceis de eletrificar como o marítimo e o aéreo, exige soluções tecnológicas já disponíveis, sustentáveis e escaláveis, como é o caso da bioenergia avançada.

Em Portugal, o Plano Nacional Energia e Clima (PNEC 2030) traça uma trajetória para a neutralidade carbónica, com metas de incorporação de 29% de energias renováveis nos transportes até 2030. A transposição da RED II para o direito nacional, através do Decreto-Lei n.º 84/2022 e respetivas atualizações, veio reforçar este compromisso, incluindo metas intermédias para os setores rodoviário, ferroviário, marítimo e aéreo. O setor ferroviário, por exemplo, deverá atingir uma taxa de 75% de eletrificação após 2025 e 100% após 2030, enquanto os transportes marítimos e aéreos terão de incorporar crescentemente fontes renováveis, abrindo espaço a soluções como os combustíveis avançados.

Num plano mais operacional, medidas fiscais como a isenção do ISP (Imposto sobre os Produtos Petrolíferos) atribuída aos biocombustíveis avançados, foram fundamentais para estimular a produção nacional. A prova disso é que a quota de produção nacional passou de 13% em 2021 para 66% até ao terceiro trimestre de 2024. A manutenção de incentivos como este é essencial para consolidar o papel da bioenergia avançada no cumprimento das metas climáticas e na criação de uma fileira nacional robusta e competitiva.

  • Qual é o estado da bioenergia em Portugal? Em que ponto estamos, o que já se fez, o que tem de ser feito.


Portugal está inserido num continente que tem liderado o combate às alterações climáticas, com um forte compromisso político e regulatório em torno da transição energética. A bioenergia avançada tem vindo a ganhar destaque no quadro europeu e nacional, fruto de um conjunto de medidas estruturadas que visam não só a descarbonização dos transportes, mas também a valorização de resíduos e a promoção da economia circular.

A nível europeu, a RED III, aprovada em 2023, introduz metas vinculativas mais ambiciosas e obrigações específicas para os Estados-Membros no setor dos transportes, nomeadamente no que toca ao aumento da incorporação de biocombustíveis avançados, definidos na Parte A do Anexo IX da diretiva. Esta versão dá prioridade à produção de combustíveis a partir de resíduos e subprodutos, promovendo cadeias de valor mais sustentáveis e alinhadas com os princípios da economia circular. Como consequência, Portugal teve de ajustar o seu quadro legal e operacional, elevar as metas nacionais e rever os mecanismos de certificação e verificação.

Em linha com as metas definidas a nível europeu, Portugal definiu objetivos ambiciosos para aumentar a utilização de energias renováveis nos transportes — com a meta global de 29% até 2030, incluindo objetivos específicos para os setores marítimo, aéreo e ferroviário. Estas metas só são alcançáveis com o forte contributo de soluções como os biocombustíveis avançados.

Neste contexto, o Plano de Ação para o Biometano (PAB) assume particular relevância. Trata-se de uma ferramenta estratégica que enquadra o papel do biometano dentro de uma visão integrada de uso eficiente de recursos biológicos. O Grupo de Acompanhamento e Coordenação do PAB (GAC-PAB) foi criado para monitorizar a implementação do plano, propor medidas concretas e alinhar as políticas setoriais com os objetivos nacionais e europeus, alicerçados também numa solução energética crescente em Portugal.

A ABA integra este grupo de acompanhamento, assumindo uma posição ativa. Esta participação permite representar os interesses de todos os agentes da cadeia de valor, assegurando que a regulação nacional considera os desafios operacionais e tecnológicos do setor, promovendo condições justas e eficazes para o crescimento da bioenergia avançada em Portugal – como acontece já noutros Estados-Membros.  Além disso, a ABA divulga, todos os anos, um relatório sobre o estado da bioenergia no país, com a finalidade de destacar a evolução do setor, identificar oportunidades e desafios, e apoiar na definição de políticas públicas e estratégias empresarias que promovam uma transição energética eficiente.

Os biocombustíveis avançados são uma das ferramentas mais eficazes para a descarbonização do parque automóvel nacional, que continuará a depender, nos próximos anos, de veículos a combustão. Neste sentido, a ABA defende um tratamento equilibrado entre soluções como o biometano e os biocombustíveis líquidos avançados, ambas essenciais para uma transição energética justa, acessível e tecnologicamente inclusiva.

Portugal tem hoje uma oportunidade de se afirmar como um exemplo europeu na valorização de resíduos e produção de energia sustentável. Com estabilidade regulatória, incentivo certo e colaboração institucional, o setor da bioenergia avançada continuará a contribuir decisivamente para um futuro mais verde, competitivo e alinhado com os objetivos ambientais europeus.


Ana Marisa Calhôa é a Secretária-Geral da ABA – Associação de Bioenergia Avançada – desde a sua criação, em 2019. Trabalhou mais de três anos no Governo português como Adjunta do Secretário de Estado da Energia, no Ministério da Economia, abordando temas como os combustíveis fósseis e os seus derivados, gás de petróleo liquefeito (GPL), biocombustíveis e recursos geológicos (particularmente a exploração de hidrocarbonetos e lítio). Iniciou a sua carreira na multinacional Petrobras onde trabalhou em várias funções, nomeadamente como Diretora de Geologia na área de exploração onde coordenou e geriu os bens operados no offshore português (Bacia de Peniche, Bacia do Alentejo e Bacia do Algarve). Licenciada em Geologia, com Mestrado em Geologia de Petróleo, a Ana formou-se na Universidade de Coimbra, onde também trabalhou como investigadora.

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